Como ficar decepcionado

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qua, 05/07/2017

Ou como planejar a decepção!

Quando eu planejei o evento em novembro do ano anterior, a ideia da canoagem em torno das ilhas no porto de Poole (em Dorset, ao sul da Inglaterra) - um dos maiores portos naturais do mundo - parecia uma ideia maravilhosa. Na minha mente surgiam imagens de uma flotilha de canoas amarradas aos pares para segurança, com cerca de 20 praticantes de PNL felizes remando em um mar calmo e azul sob o sol quente de junho.

No módulo anterior desse curso no início de maio, nós passamos uma manhã explorando e modelando uma escalada nas montanhas na costa de Dorset sob um brilhante sol, o que reforçava mais ainda a minha expectativa na sessão de canoagem, na aprazível manhã de junho.

Quando o dia finalmente chegou, o tempo parecia um tanto duvidoso com uma leve brisa e pesadas nuvens cinzentas. Na hora em que iniciamos o breve percurso até a praia, tinha começado a chover. Nós descarregamos e colocamos as canoas na água debaixo de uma garoa constante e com um mar cinza e encrespado. Isso não combinava com a minha imagem sonhada para o dia.

Como se constatou mais tarde, tivemos um dia ótimo. Afinal estávamos no  meio de um treinamento de Certificação de Practitioner e o tema principal para esse módulo era Ressignificação – como mudar o significado que nós vinculamos a um evento!

Assim, nós aplicamos a nossa postura e as nossas habilidades de PNL, ressignificadas criativamente e tivemos um tempo maravilhoso com vento e chuva contínua – embora não fosse exatamente isso que todos nós esperávamos.

Fantasia e realidade

Desde o início do dia, eu estava consciente das muitas diferenças entre a minha expectativa e a realidade - e do desenvolvimento do processo de "decepção". Dessa forma, eu fui capaz de interromper o processo de decepção no início e lidar com a diferença.

O velho ditado "o homem põe - Deus dispõe" veio à mente e é um tema recorrente na maioria das nossas vidas.

Alguns anos atrás, durante a minha fase hippie, eu fiz o que era então uma viagem quase obrigatória para a Índia em busca de gurus e iluminação. E descobri que a maioria do povo sagrado que encontrei estava impulsionando o sentido da sua própria piedade por meio do sofrimento e da abstinência ou, do mesmo modo, apreciando a adulação e a riqueza oferecida pelos nativos e pelos estrangeiros ingênuos. E a diferença entre a expectativa e a realidade resultou em "decepção".

Eu havia planejado cuidadosamente a viagem da Inglaterra até a Grécia, porque nesse trecho estaria de bicicleta. Aí deixei a bicicleta num depósito e comecei a segunda fase. Eu não tinha feito quase nenhuma preparação para essa parte da viagem, assim eu passava um dia ou me mudava de uma cidade para outra, enquanto viajava para o leste – e a viagem foi uma delícia, com muitas aventuras e surpresas.

Eu estava ansioso para ver o Taj Mahal. Eu tinha lido um pouco sobre ele, visto algumas fotografias maravilhosas e conhecido muita gente no caminho que exaltavam sua beleza e majestade. Na realidade, parecia menor, mais desgastado e menos imponente do que eu esperava. Decepção novamente.

Quando cheguei a Madras, na índia, estava sem dinheiro e tive que passar um mês esperando um amigo me enviar o dinheiro para a viagem de regresso à Inglaterra. Madras é um lugar maravilhoso, cercado por palmeiras cheias de papagaios e macacos, vilarejos interessantes e antigos templos esculpidos na rocha e está localizada na espetacular costa do Oceano Índico. Eu nunca tinha ouvido falar de Madras antes, então em vez de decepção, eu tive um mês de descobertas e surpresas.

Quando o dinheiro chegou, comecei a viagem que eu sabia que me levaria de volta através da Índia, Paquistão, Afeganistão, Irã, Turquia e Europa. Eu estava decidido que, dessa vez, faria a viagem à Cabul para ver as famosas esculturas gigantes do Buda de Bamiyan. (Sim, os mesmos Budas que posteriormente foram destruídos pelos talibãs! E é triste pensar que cerca de 5.000 dos maravilhosos, dignos e hospitaleiros afegãos, homens, mulheres e crianças, foram mortos apenas nos últimos meses).

De qualquer maneira, isso foi por volta dos anos setenta e desde a minha viagem para o leste, o Afeganistão tinha cedido à pressão internacional e fechado suas fronteiras aos cidadãos irlandeses por causa das suspeitas de que o IRA recebia armas dos fabricantes de armas afegãos. Portanto, não havia como voltar ao país e conseguir ver os Budas. Mais uma decepção!

(Esse contratempo resultou numa viagem de lazer maravilhosa e não planejada pelo sul do Paquistão e pelo sul e região central do Irã.)

Como ficar desapontado

Se nós usarmos a PNL para modelar a decepção, podemos reconhecer uma série de peças chave no processo de decepção.

  1. Primeiro você precisa de uma imagem detalhada de como as coisas são, ou seriam ou deveriam ser.
  2. Então você tem que passar algum tempo desenvolvendo essa imagem, tornando-a mais idealista e praticamente vivendo nela.
  3. Finalmente você compara a realidade com a sua fantasia e fica perturbado porque elas não combinam!
     

Claro, isso só produz algo como um estado de leve decepção. Para experimentar uma VERDADEIRA decepção – do tipo que leva à depressão ou à raiva – você tem que passar algum tempo se repreendendo pelo fato de as duas imagens não combinarem.

Também é uma boa ideia encontrar um bode expiatório para a diferença de modo que você possa, então, culpar uma outra pessoa, o destino ou Deus – de fato, qualquer um ou qualquer coisa, exceto você mesmo!

Todos nós fazemos isso!

A maioria de nós é um especialista na fase leve do processo de decepção. Começamos a planejar as férias de verão no rigor do inverno. Olhamos os folhetos de cenários idílicos, cuidadosamente retocados, e sempre mostrando um clima ideal nesses locais. Então gastamos 4, 5 ou 6 meses vivendo essa fantasia, experimentando com antecedência todas as maravilhosas experiências que planejamos – vivendo na terra dos folhetos.

Depois estragamos tudo saindo realmente de férias.

E descobrimos que os quartos são menores, que a esperada vista para o mar da varanda tem a vista panorâmica de um canteiro de obras, que a comida é "estranha", que as paredes do apartamento são tão finas que podemos acompanhar as conversas dos nossos vizinhos, e que o tempo não permanece uniformemente ideal durante toda nossa estadia.

Talvez a ideia seja reservar as férias e passar cinco meses desfrutando as férias na fantasia. E depois, no último minuto, cancelar tudo! Evita toda a decepção.

Habilidades avançadas

Para se ficar realmente bom no processo da decepção, temos que ser eficientes em:

  1. Imaginar um cenário ideal, desenvolver os detalhes dessa imagem
  2. Viver na fantasia, 'associar-se com ela'  até que ela se torne quase real
  3. Comparar a realidade imperfeita com a fantasia perfeita e xingar e esbravejar sobre as imperfeições.
     

Relacionamentos decepcionantes

Aqui muitos de nós executamos um padrão previsível. Você encontra alguém, você cai de amor por ele(a), e então começa a criar as imagens da fantasia do futuro. Você pode criar seu projeto pessoal de como as coisas serão em um ano, cinco anos ou mesmo 10 anos - e esse projeto é o seu plano de como 'será' o relacionamento entre vocês.

Então, meses ou anos mais tarde, você olha para a realidade e descobre que ela apresenta pouca ou nenhuma semelhança com o seu projeto, e culpa a outra pessoa por não ser quem você esperava que ela fosse!

E aí você anuncia acusadoramente "você mudou!" como se isso fosse um grave pecado. Claro que é, na sua versão da realidade - porque ela não seguiu os seus planos. Ela “fez você ficar” decepcionado, então xingue e diga o que vem à cabeça: "Não há justiça nessa vida? Por que não posso ter uma chance! É pedir demais que, pelo menos uma vez, as coisas funcionem do jeito que eu quero? Etc., etc."

Famílias decepcionantes

Digamos que você se acomode com alguém e decida ter filhos. Você conversa sobre como será e cria imagens prazerosas da família feliz. E adivinha? As crianças revelam-se barulhentas, não sorriem o tempo todo como nos anúncios da TV, talvez nem sejam bonitas, se comportam mal, e às vezes até ficam doentes ou ranzinzas. E pior, elas não continuam pequenas e fofinhas, mas crescem e se tornam adolescentes com pontos de vista e valores próprios - muitas vezes bastantes diferentes das visões e valores que você queria que eles tivessem. Mais uma vez, a vida difere do seu projeto. Mais uma vez você faz funcionar o processo de decepção.

“Eles me deixaram decepcionado”

Há uma crença generalizada, embora raramente expressa ou mesmo conscientemente reconhecida, que o mundo e as pessoas devem combinar com as nossas expectativas. Em particular, as pessoas devem se comportar de acordo com as expectativas que temos sobre elas. E se não se comportarem dessa maneira é porque elas “se recusam a colaborar” ou não estão levando em conta os nossos sentimentos, ou estão tentando nos irritar, etc.

Essa atitude, que normalmente "funciona em segundo plano", conduz a intermináveis decepções, muita frustração e, ocasionalmente, explosões de raiva para com aqueles que simplesmente se recusam a se encaixar nos nossos planos para eles.

Decepção e violência em casa 

Algumas pessoas, quando percebem que não podem impor os seus projetos ao mundo como um todo, começam a impor sobre os mais próximos a elas - seu parceiro ou até mesmo seus filhos. E, se esses parentes próximos não cederem às suas demandas e expectativas, essa decepção pode se dirigir para a frustração e a violência.

Se elas trataram os amigos ou colegas com violência verbal ou física, também podem retaliar ou recorrer à lei. Assim, elas se impõem a quem não pode revidar física ou verbalmente ou não pode escapar.

Algumas pessoas seguem uma forma sutil desse padrão, onde elas raramente necessitam recorrer ao abuso físico ou mental - apenas explodir a cada ano ou dois, demolir o caráter de alguém, ou quebrar algumas coisas ou bater um pouco em alguém. Então, a ameaça não verbal de uma explosão futura mantém as pessoas em ordem por um bom tempo.

3 passos para abrandar a decepção

(1) Reconhecer que a decepção é uma parte normal da vida. É ótimo aguardar as coisas com interesse. É ótimo ter fantasias. Muitas vezes, como acontece com as férias anuais, aguardar pode ser uma parte muito importante do processo e nos permite ter "algo para aguardar" nos escuros e sombrios dias do inverno (pelo menos no hemisfério norte).

(2) Reconhecer que a realidade não vai ser exatamente como a sua fantasia ou expectativa ou projeto e pode nem se aproximar dela – e atualizar continuamente a sua fantasia com o feedback do mundo real.

(3) Admitir que a causa da sua decepção é você (ou, para ser mais exato, a maneira como você usa seu cérebro) e que não há nenhum propósito em culpar os outros por não realizarem a sua fantasia - a menos que eles, como adultos condescendentes, tenham concordado em dedicar suas vidas para realizar o seu projeto para eles.

Aplique isso nos relacionamentos

Esperar que as outras pessoas se comportem de acordo com o nosso projeto para elas é injusto para elas. No entanto, muitos de nós parecem não apreciar isso. Afinal, se ele/ela me ama de verdade, ele/ela será exatamente como eu acho que deveria ser...!

Pode ajudar se você compartilhar com o outro os seus sonhos para o futuro - para si mesmo e para o relacionamento. Porque isso permite que as duas partes adaptem as suas fantasias com base no que a outra pessoa tem em mente.

Ficar decepcionado com as suas férias ou com a sua viagem para um concerto é uma coisa: ficar decepcionado com o comportamento das outras pessoas em sua vida é uma questão completamente diferente - e terá um efeito mais enfraquecedor na qualidade da sua vida e dos seus relacionamentos.

Se você quiser realmente que um outro ser vivo realize a sua fantasia, compre um cachorro. De preferência quando for pequeno e bem maleável. E treine-o exatamente como você deseja que ele se comporte – cachorros são criados para cooperar com esse tratamento. Humano significa menos submisso – e jamais no longo prazo!

Dicas finais

A maneira mais conveniente de libertar-se do padrão da decepção é ficar bem atento ao executar o padrão - enquanto você o estiver executando. Você descobrirá que, dessa forma, gradualmente, os momentos em que você se decepciona e a duração da decepção se tornam cada vez menores e a intensidade da decepção muito menor.

Não há nenhum propósito em tentar "não” ter grandes expectativas - nem isso seria apropriado. Em qualquer caso, não é a fantasia que é o problema - é não atualizá-la e não reconhecer que os outros também têm as suas fantasias ou planos. E que serão provavelmente diferentes.

Mantenha os seus sonhos, o seu otimismo, as suas esperanças, as suas fantasias. É ótimo viver na terra da fantasia, e fantasiar é fascinante. Isso só se torna disfuncional se pensarmos que a realidade irá definitivamente, ou pior, deve definitivamente combinar com a nossa fantasia...

O artigo “How to be Disappointed...” foi publicado no The Pegasus NLP Newsletter no site www.nlp-now.co.uk

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